Por vidas mais singulares


Leandro Colling*

As edições anteriores da Cena Queer, e essa nova que agora ocorre, mostram como existem formas muitos diferentes de estranhar as normas e convenções sociais que geram tantos preconceitos, sejam eles diretamente relacionados ou não com as sexualidades ou os gêneros.

Ainda que o foco central recaia sobre o campo das dissidências sexuais e dos múltiplos gêneros, a Cena Queer também estranha as próprias formas canônicas das artes, a intensa relação da sexualidade com as questões raciais e os padrões corporais que geram essa corrida louca por um corpo que ninguém, a rigor, alcança, mesmo consumindo cavalares doses de creatina e outras substâncias combinadas com trabalhos forçados nas academias de ginástica. 

Essa riqueza da Cena Queer demonstra como o estranhamento provocado pelos embaralhamentos dos gêneros, combinados com fortes críticas que desconstroem as normas que geram violentos processos de subalternização, podem ser feitas de inúmeras formas. 

Ou seja, não existe um modelo, um manual de como fazer uma cena queer. Ao invés de uma nova identidade, escola, tendência ou estética, o que se vê é uma multiplicidade e singularidade de manifestações e criações. Mas, ao mesmo tempo, isso não quer dizer que vale tudo, o que qualquer coisa é queer. 

O que une as performances é a sua veia crítica, o desejo como potência de revelar as nossas singularidades, e não o projeto de criar novos padrões, sejam eles quais forem. 

Assim, surgem novas possibilidades de viver, novos modos de existência, novos gêneros, sempre múltiplos, novos processos de subjetivação, cada um com as suas particularidades, com as suas combinações. 

No fundo, somos um pouco assim, mas querem-nos uniformes, padronizados, normatizados, iguais a determinados modelos que de tão inumanos jamais alcançamos. 

Esses novos processos de subjetivação impulsionados por experiências como as da Cena Queer buscam deixar tudo isso mais perceptível para que, aí sim, nós mesmos construamos as nossas vidas como uma obra de arte.

Suely Rolnik, em Cartografia sentimental, transformações contemporâneas do desejo, nos mostra como movimento antropofágico e da contracultura também vislumbravam a gestação de uma “subjetividade flexível e a radical experimentação de modos de existência” (p. 15). A partir da ditadura, no entanto, defende Rolnik, se instalou no Brasil um abismo inegociável entre duas vertentes, a micro e a macropolítica. Uma das causas da criação desse abismo esteve na “dificuldade que se tinha no Brasil de reconhecer a potência política da arte e, portanto, o caráter político da experimentação cultural e existencial” (p. 15).

Depois veio a ditadura, que impactou muito na micropolítica. “O que caracteriza a política de subjetivação desses regimentos, sejam eles de direita ou de esquerda, é o enrijecimento patológico do princípio identitário” (p. 16). Para ela, o movimento antropofágico, em 1920, reformulado pela contracultura nos anos 1960 e 70, teve como um dos seus principais alvos a crítica ao regime identitário.

Hoje, continua ela, não estamos mais sob o regimento identitário, pois dispomos de uma “subjetividade flexível”, mas o problema é que agora ela foi cooptada pelo capitalismo cognitivo, que “apropriou-se da potência de criação que então se emancipava na vida social para colocá-la de fato no poder” (p. 18).

Recupero essas reflexões de Rolnik porque elas dão bem a dimensão de uma proposta como a Cena Queer: pela micropolítica (que não significa política em escala micro, mas a geração de novos processos de subjetivação), pela potência política da arte, com críticas a apropriação de nossas vidas pelo deus mercado, singularize-se, e se jogue!

Leandro
* professor da Universidade Federal da Bahia, coordenador do CUS.