Leandro Colling*
Nos últimos anos, quem estuda sexualidades e gêneros
passou a ouvir a palavra queer com mais frequência no Brasil. As reflexões se
espalharam rapidamente e conceitos centrais dos estudos queer, como
heteronormatividade, heterossexualidade compulsória, performatividade de
gênero, entre outros, hoje são usados em documentos oficiais dos governos, na
imprensa e nas rodas de conversas entre amigos. Mas o que é mesmo queer? E o
que são os estudos queer? E o que isso tudo tem a ver com a Cena Queer?
Queer, em língua inglesa, é (ou era) uma conhecida
forma de insultar os homossexuais. Se ficássemos apenas nesse sentido da
palavra, queer seria algo parecido com bicha, viado, sapatona e todo o amplo
leque de termos usados no Brasil para insultar as pessoas que não são, ou não
aparentam ser, heterossexuais.
No entanto, o significado do queer vai além disso,
pois também se refere a estranho, a algo que é difícil de definir, a aquilo que
estranha as formas convencionais e as normas. E é a potência desses outros
significados que muito interessa e que faz com que não tenhamos, em língua
portuguesa, uma palavra que dê conta de tudo isso.
Por essa razão, mesmo com todos os problemas,
continuamos a usar a palavra queer, sabendo dos seus riscos. Um deles é o
usarmos uma palavra/conceito que, aos nossos ouvidos brasileiros, soa como algo
bonito, até chique, enquanto que o queer, pelo menos antes dos estudos queer,
remetia a características que poucas pessoas gostariam de ver atribuídas a si.
As pessoas ligadas aos estudos queer no Brasil, na
Espanha, Portugal e na América Latina, desde logo, mesmo usando o termo queer,
sempre se esforçaram para, junto dele, usar palavras em suas línguas que se
aproximam do insulto queer. O grupo de pesquisa que eu ajudei a criar e
coordeno na Universidade Federal da Bahia, por exemplo, remete seu nome para
uma área de nosso corpo tida como abjeta. Trata-se do ânus, ou melhor, do cu.
Por isso, nosso grupo de chama CUS,
por sinal sigla, também, de Cultura e Sexualidade.
Os estudos queer, chamados como tal, começaram a
surgir nos Estados Unidos no final dos anos 80. Várias pessoas se apropriaram
do insulto para usá-lo com a potência do estranhamento das normas sobre a
sexualidade e os gêneros. As reflexões iniciais também estavam conectadas com o
que acontecia no momento nos movimentos LGBT e feminista da época.
Parte dos ativistas questionava e criticava o fato
do movimento gay estar cada vez mais normatizado, aspirar o modelo de vida
heterossexual e por rejeitar as pessoas trans, lésbicas e as chamadas “bichas
loucas”, as afeminadas fexativas. Era também uma época crítica para o combate
ao vírus HIV, que o governo ultraconservador de Ronald Reagan insistia em
ignorar. Movimentos como o ACTUP, então,
começaram a realizar ações de desobediência civil, com forte impacto midiático.
Outro coletivo importante foi o Queer
Nation.
Já em relação ao movimento feminista, a tensão se
dava especialmente com as lésbicas, que eram rejeitadas pelas mulheres
heterossexuais. Tensões raciais também faziam parte de todo esse processo em
ambos os movimentos.
Os estudos queer entraram no Brasil, em especial,
pela área da educação. A professora Guacira Lopes Louro foi e
continua sendo uma das principais divulgadoras desses estudos. Hoje, esses
estudos já são utilizados em outras áreas do saber e ainda provocam muitas
tensões e estranhamentos.
A historinha que contei até agora tem sido recontada
nos últimos dois anos. Isso porque temos identificado, cada vez com mais
intensidade, que já tínhamos pensamentos e ações queer muito antes dos chamados
estudos queer. No Brasil, e também em outros lugares da América Latina, a obra
de Nestor
Perlongher, por exemplo, tem sido relida e considerada como um dos nossos
primórdios dos estudos queer.
Em um texto de minha autoria, ainda não publicado,
sugiro que precisamos atentar para o quanto o queer, entre nós, esteve (e
continua estando) presente na literatura (João Gilberto Noll), no teatro (Dzi Croquettes) e também
nas obras de pessoas influenciadas por Foucault, Deleuze e Derrida, três
autores franceses centrais para os estudos queer. Um exemplo? Suely Rolnik e o seu Cartografia sentimental, transformações
contemporâneas do desejo, inicialmente publicado em 1989, e Edward MacRae,
em A construção da igualdade e ao
artigo Os respeitosos militantes e as
bichas loucas. Este último texto republicamos no primeiro livro do CUS, que
pode ser acessado aqui.
Mas o que isso tudo tem a ver com a Cena Queer?
Tudo. Influenciada por reflexões dos estudos queer, a Cena Queer, desde que
surgiu, veio para estranhar. E esse estranhamento não diz respeito apenas a
questões de sexualidade e gênero. Mas esse é o assunto do próximo texto. Aqui,
para terminar, quero falar alguma coisa sobre a relação entre o queer e a
performance e as demais manifestações artísticas. Essa relação esteve presente
desde o início dos estudos queer por várias razões. Vou desenvolver aqui apenas
uma delas.
A filósofa Judith Butler, uma das
mais importantes teóricas dos estudos queer, retirou das performances de
pessoas trans e drags as suas mais importantes reflexões inicias sobre o que
depois veio a chamar de performatividade de gênero. Vendo espetáculos em bares
e o filme Paris em chamas,
Butler pode refletir sobre como o gênero é performatizado não apenas nos
palcos, mas também em nossas vidas cotidianas. De tanto repetirmos aquilo que
nos ensinaram (muitas vezes com violência), naturalizamos as nossas
performatividades de gênero.
Butler revela como isso gera o preconceito e o
desrespeito a quem tem uma performatividade de gênero diferente da esperada
pela sociedade. Com essas reflexões, ela vai burilando obras anteriores, como a
de Monique Wittig e
outras, sobre o caráter compulsório da heterossexualidade, que não diz respeito
apenas a fazer sexo com uma pessoa de outro sexo, mas também tem a ver com toda
uma forma de se comportar socialmente como heterossexual. Ou seja, a
heterossexualidade não é natural como aparenta ser (leia mais sobre isso aqui).
Um parêntese importante: performatividade de gênero,
o conceito, não é a mesma coisa que performance artística, esta que é
deliberadamente pensada para atingir determinado fim e que a cada dia pode ser
modificada. Essa confusão já rendeu muita polêmica, pois as pessoas associaram
a tese da performatividade de gênero com a ideia de que, então, a cada dia uma
pessoa poderia assumir um gênero distinto. Sabemos que as pessoas (pelo menos
não a maioria) não transitam assim rapidamente entre os gêneros.
O que quero salientar é que a relação entre as
discussões entre performatividade e performance sempre foram centrais para os
estudos queer e as práticas artísticas sempre foram usadas e valorizadas como
potentes ações políticas para desconstruir e criticar as normas.
Agora compare um pouco disso com a Cena queer e faça
as suas reflexões.
Bons estranhamentos
Leandro
* professor da Universidade Federal da Bahia,
coordenador do CUS.